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O culto da autoajuda

Para combater a rasa e danosa idolatria do euColossenses 3.16

INTRODUÇÃO

Um dos fatores que mais dificultam para muitos a nova vida em Cristo é o modo pobre como encaram a sua Bíblia. Reduzem a revelação bíblica a verdades pontuais de caráter terapêutico e subjetivista, isto é, algo que vai satisfazer uma necessidade pessoal imediata. O grande drama cósmico desenrolado na história torna-se um material meramente informativo sobre como eu posso ter uma vida vitoriosa – na acepção secularista mais mesquinha de prosperidade financeira e saúde física. Talvez um dos fatores que mais enfraquecem a igreja seja haver tantos líderes, crentes e ministérios baseados em uma espiritualidade ancorada na busca de autoajuda.

As consequências são fatais. É muito grande o peso da substituição bíblica pela literatura e mentalidade de autoajuda. Para constatar isso, não precisamos ir muito longe. Basta conferirmos nossas redes sociais e avaliarmos a natureza dos posts “evangélicos” que viralizam. Em sua maioria, aquilo que chama a atenção e ganha repercussão na rede social está alicerçado em um individua­lismo estranho às Escrituras.[1] Deus se torna um poder impessoal a ser manipulado e as Escrituras um amuleto mágico. Se corretamente pronun­ciadas as fórmulas mágicas, ela pode trazer o que nos falta para a realização individual.

I. PEQUENAS HISTÓRIAS E A GRANDE HISTÓRIA

Existe, contudo, outra forma de conectar a revelação dos planos históricos de Deus à minha e a sua história. O teólogo holandês radicado nos Estados Unidos da América, Geerhardus Vos (1862-1949), nos ajuda a corrigir esse equí­voco conectando a revelação com a história da redenção. Ele nos lembra que a revelação não foi completada de uma vez só, mas se desdo­brou ao longo de uma série de atos sucessivos. Essa maneira de enxergar a autorrevelação de Deus mantém a Bíblia intimamente ligada ao grande drama cósmico. Objetivamente falando, a redenção diz respeito a cada ato e fala de Deus no estabelecimento da aliança com seu povo – atos que culminam na encarnação, expiação e ressurreição de Cristo.[2]

Para muitas pessoas, essa consideração histórica é o máximo que conseguimos declarar a respeito das Escrituras. Trata-se de uma fronteira espiritual. Muitas pessoas terminam aqui e não sabem mais como apropriar-se dessa grande história na sua própria história – e é nessa inabilidade que nasce a carência de formas terapêuticas e de autoajuda para aplicar o “evangelho” na vida de muitos cristãos.

Entretanto, Geerhardus Vos continua sua argumentação e explica que essa forma histórica de encarar as Escrituras é só a parte “objetiva” da teologia bíblica. Existe também uma segunda fa­ceta subjetiva que nos ajuda a aproximar a grande história bíblica da nossa pequena história pessoal. Segundo Vos, “A redenção é parcialmente objetiva e central, e parcialmente subjetiva e individual”. Com isso ele se refere aos atos redentores de Deus que aconteceram a favor da pessoa, mas fora dela [por isso chamados de objetivos], e se refere aos atos de Deus que atingem o interior da pessoa [por isso chamados de subjetivos, isto é, ocorrem dentro do sujeito]. Ainda de acordo com Vos, os “atos objetivos centrais são a encarnação, expiação e ressurreição de Cristo”. Já os subjetivos são repetidos em cada indivíduo e são “a regeneração, justificação, conversão, santificação e glorificação”.[3]

Com essa distinção e definição do que seria a dimensão subjetiva da redenção – que inclui a regeneração, justificação, conversão, santificação e glorificação de cada discípulo de Jesus – Geerhardus Vos nos lança em outra compreensão bíblica muito distante do mero uso terapêutico das Escrituras. Eu passo a enxergar como a grande história mudou minha trajetória pessoal e como ela vai me mostrar o horizonte para o qual devo caminhar. Ou seja, a Bíblia deixa de ser um livro cheio de frases de efeito para serem postadas no meu Face ou para serem decoradas como amuletos da sorte. Ao contrário, nela lemos tudo aquilo que Deus diz sobre nós (indicativos) e as ordens que devemos seguir a partir disso (imperativos). Tal modificação é paradigmática e tem condições de lançar outros fundamentos sobre a vida cotidiana.

II. AUTOAJUDA OU REVELAÇÃO DO ALTO

Quando alteramos nosso modo de ver as Escrituras, modificamos também a maneira como nos comportamos e nos relacionamos com as pessoas – inclusive em rede social. Ao ensinar sobre a velha natureza que deveria ser abandonada rumo à nova criatura que somos em Cristo, o apóstolo Paulo escreve um belíssimo texto em Colossenses 3.5-17. Dentre muitos elementos negativos e positivos que o apóstolo de Tarso lista no processo de transformação dos cristãos à imagem de Cristo, a Palavra de Deus ocupa lugar destacado. Quanto a isso, ele diz: “Habite ricamente em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão em vosso coração” (v. 16). Nesse breve texto, não só a necessária saturação da Palavra é destacada na vida do discípulo de Jesus, mas também a descrição dos meios pelos quais isso pode ser realizado.

Paulo está preocupado com “as pessoas que nutrem doutrinas errôneas e não reconheceram a plena suficiência de Cristo. É por isso que ele enfatiza a ‘palavra de Cristo’ aqui”.[4] Os misticismos aos quais falsos mestres haviam conduzido os colossenses só poderiam ser combatidos com uma ênfase de mesma proporção na suficiência da pa­lavra de Cristo. É impossível não traçarmos uma correlação entre os desafios que a igreja primitiva enfrentava e os falsos ensinos com os quais ainda hoje lutamos. A orientação permanece a mesma: que a Escritura habite em nós tão abundantemente, que transbordemos nas pessoas ao redor. A ideia aqui é de uma pessoa muito rica. Quanto a isso, John MacArthur é bastante preciso: “As Es­crituras devem permear todos os aspectos da vida do crente e controlar seus pensamentos, palavras e ações (cf. Sl 119.11; Mt 13.9; Fp 2.16; 2Tm 2.15). Esse conceito é paralelo ao ato de se encher do Espírito (Ef 5.18), uma vez que os resultados de ambos são os mesmos. O poder e a motivação para todos os efeitos consistem no preenchimento com o Espírito Santo; aqui é a palavra que habita ricamente. Essas duas realidades são, na verdade, apenas uma. O Espírito Santo preenche a vida que é controlada por sua Palavra. Isso enfatiza que o enchimento com o Espírito não é uma experiência extática ou emocional, mas um controle constante da vida, por meio da obediência à verdade da palavra de Deus”.[5]

A despeito do que muitos acreditam, ser cheio do Espírito Santo não é sinônimo de experiências emocionalistas e fora do controle consciente. Em vez disso, trata-se de uma vida disciplinada na cons­tância de colocar-se diante das palavras de Cristo e fazer com que elas controlem todo o nosso ser. Naturalmente essa abundância transbordará aos que estão ao nosso redor na forma de ensinamen­tos, admoestações e cânticos para a glória de Deus. Teremos nossa linguagem marcada pela presença de salmos, hinos e cânticos espirituais.

CONCLUSÃO

Alguns sustentam que o estudo teológico pode esfriar e até matar a fé. Alimentadas pelo estereótipo de que fé e razão se opõem, essas pessoas não conseguem levar cativas suas mentes à obediência de Cristo. Reconhecemos que muitos complicaram sua vida quando começaram a estudar, mas não foi culpa da teologia em si. Na verdade, foi justamente porque faltou boa teologia que sua formação espiritual foi comprometida. Em alguma medida todos nós somos teólogos, a diferença, portanto, estará se a nossa teologia é boa ou não.

O evangelho segundo as mídias sociais

Confira seus posts. Qualquer projeto de espiritualidade que faz o ser humano depender de si mesmo – de sua autoajuda – caminha para o fracasso e prejudica a igreja.

A cada nova leitura bíblica e de materiais encharcados da Escritura, teremos a mais vívida concepção de que a nossa superficialidade só será superada com um trabalho constante e disciplinado nos colocando com humildade diante de Deus para aprender. Teologia não é um luxo de alguns que se dedicaram ao trabalho ministerial de forma profissional. Antes, é uma necessidade de todo aquele que recebeu de Cristo o impe­rativo de negar a si mesmo, tomar sua cruz e o seguir. Qualquer projeto de espiritualidade centrado no ser humano e que busca autoajuda para ultrapassar a condição humana caída não só estará fadado ao fracasso, como também será fatal para a igreja. Quando formos capazes de distinguir luxo de necessidade, começaremos a organizar toda a nossa rotina para dar prioridade aos momentos de silêncio, meditação e oração apoiados pela Palavra. Nossa vida será rearranjada em suas prioridades e nós nos sentiremos muito mais habilitados para servir o próximo com o que temos aprendido.

APLICAÇÃO

Quando for ler sua Bíblia hoje, não faça como quem está atrás de curiosidades sobre Deus que podem deixar sua vida mais confortável. Antes, deixe o seu mundo ser confrontado pela nova criação que Deus estabeleceu a partir da obra consumada de Cristo. Seja diligente para que cada promessa de Deus, cada imperativo, cada indicativo passe assumir o controle sobre seus pensamentos, vontades e, inclusive, seus senti­mentos. Antes de pedir qualquer coisa para Deus e lhe apresentar o seu mundo privado, deixe que ele o confronte com a renovação que está realizando em Cristo Jesus. Agindo assim, você glorificará a Deus e encontrará satisfação eternamente nele.

Texto extraído da revista Nossa Fé – nº 89 – Confira o seu perfil, Editora Cultura Cristã.

Pedro Dulci é filósofo e pastor presbiteriano, é casado com Carolinne e pai do Benjamim e da Anna. Tem doutorado em Filosofia pela UFG com período de pesquisa na Universidade Livre de Amsterdã, na Holanda. É cofundador e coordenador pedagógico do Invisible College, além de pastor da Igreja Presbiteriana Bereia, em Goiânia. Atualmente está cursando o Doutorado em Ministério pelo Missional Training Center, sob a supervisão do professor Michael W. Goheen.


[1] EGGERICHS, Emerson. Pensem bem antes de enviar (Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019), p. 24.

[2] VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica (São Paulo: Cultura Cristã, 2003), p. 16.

[3] Ibid., p. 16-17.

[4] KEENER, Craig. Comentário Histórico Cultural da Bíblia (São Paulo: Vida Nova, 2017), p. 689.

[5] MACARTHUR, John. Comentário Bíblico MacArthur (Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018), p. 1703.

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