Nossa missão é contribuir para a reforma da igreja no Brasil por meio da literatura

O alcance da providência de Deus

Deus removeu o pecado de Davi. Isso significa que Deus estava concedendo a Davi a remissão de seus pecados. Embora a culpa eterna do pecado de Davi tenha sido remida, ele recebeu o castigo temporal pelo seu pecado. Por meio de Natã, Deus anunciou que a criança nascida da união adúltera seria tirada de Davi e Bate-Seba. O versículo seguinte é difícil de ser assimilado pela nossa fé, mas é um texto que afeta em muito o nosso entendimento da providência de Deus:

“Natã foi para sua casa. E o SENHOR feriu a criança que a mulher de Urias dera à luz a Davi; e a criança adoeceu gravemente” (2Sm 12.15).

A Escritura declara que o Senhor feriu o filho recém-nascido de Davi com uma doença mortal. É duro ouvir isso. Hoje é lugar-comum na igreja ouvir dos pregadores tentativas inúteis de isentar Deus de qualquer envolvimento com a doença e a morte dos seres humanos. Ouvi um televangelista afirmar que Deus não tem nada a ver com as doenças e a morte. Ele atribuiu essas tragédias humanas à obra de Satanás.

Tais opiniões cometem violência não somente contra o nosso entendimento da providência de Deus, mas também contra nossa compreensão de todo o caráter de Deus. O cristianismo não é uma religião dualista na qual Deus e Satanás são iguais, enfrentando poderes opostos, e destinados a um combate eterno que só pode resultar empatado. Deus é soberano sobre toda a sua criação, inclusive o domínio subordinado de Satanás. Deus é Senhor tanto da morte como da vida. Ele exerce domínio tanto sobre a dor e a doença quanto sobre a prosperidade.

Se Deus não tivesse nada a ver com a doença ou a morte, os cristãos, entre todos os povos, seriam os mais dignos de pena. Significaria viver em um universo governado pelo caos, no qual a mão do nosso Pai estaria amarrada pelo destino e presa pela instabilidade do acaso. Seu braço não seria poderoso para salvar, seria impotente. Mas, ao contrário do que dizem certos pregadores, Deus tem tudo a ver com a doença e a morte. Deus sabe tudo sobre sofrimento. O método de redenção é a Via Dolorosa, o caminho para a cruz. Nosso Senhor foi ele mesmo um homem de dores e sabe o que é padecer. Não, Deus não está alheio nem distante do sofrimento humano. O padecer do homem está dentro do alcance da sua providência. Nossa família compreendeu essa verdade quando Sherrie e o marido perderam seu bebê.

E Davi também a entendeu, como se vê na narrativa subsequente:

Buscou Davi a Deus pela criança; jejuou Davi e, vindo, passou a noite prostrado em terra. Então, os anciãos da sua casa se achegaram a ele, para o levantar da terra; porém ele não quis e não comeu com eles. Ao sétimo dia, morreu a criança; e temiam os servos de Davi informá-lo de que a criança era morta, porque diziam: Eis que, estando a criança ainda viva, lhe falávamos, porém não dava ouvidos à nossa voz; como, pois, lhe diremos que a criança é morta? Porque mais se afligirá.

Viu, porém, Davi que seus servos cochichavam uns com os outros e entendeu que a criança era morta, pelo que disse aos seus servos: É morta a criança?

Eles responderam: Morreu.

Então, Davi se levantou da terra; lavou-se, ungiu-se, mudou de vestes, entrou na Casa do SENHOR e adorou; depois, veio para sua casa e pediu pão; puseram-no diante dele, e ele comeu. Disseram-lhe seus servos: Que é isto que fizeste? Pela criança viva jejuaste e choraste; porém, depois que ela morreu, te levantaste e comeste pão.

Respondeu ele: Vivendo ainda a criança, jejuei e chorei, porque dizia: Quem sabe se o SENHOR se compadecerá de mim, e continuará viva a criança? Porém, agora que é morta, por que jejuaria eu? Poderei eu fazê-la voltar? Eu irei a ela, porém ela não voltará para mim (2Sm 12.16-23).

Durante sete dias, Davi lutou com Deus. Ele orou, jejuou e recusou ser consolado. Os servos dele estavam profundamente preocupados com o mal que o rei poderia fazer a si mesmo. Eles rogaram a Davi que parasse de jejuar, que comesse e cuidasse de si mesmo. Quando a criança morreu, tiveram muito medo de avisá-lo. Mas Davi era astuto. Ele deduziu pelo modo que os servos cochichavam que a criança tinha perecido. Então, quando lhe revelaram a verdade, ele fez algo que os espantou. Davi se levantou, lavou-se, ungiu-se e foi à casa de Deus para adorá-lo.

Aqui, encontramos o Davi que era um homem segundo o coração de Deus. Neste ponto, evidencia-se o caráter que ressoa ao longo de todos os salmos. Quando Deus disse não aos rogos de Davi, ele foi de imediato à igreja – não para choramingar, nem para se queixar, mas para adorar. Aqui, vemos Davi vivendo coram Deo, diante da face de Deus. Davi defendeu seu caso diante do trono do Onipotente – e perdeu. Não obstante, ele se curvou diante da providência de Deus, para deixar Deus ser Deus.

Essa submissão diante da providência de Deus é algo difícil de ser entendido pelo mundo. Os servos de Davi não a conseguiram captar. Eles viram em seu rei uma anomalia espiritual. Pensaram em repreendê-lo por suas atitudes confusas. Achavam que o rei deveria lamentar-se depois de a criança ter morrido, pois acreditavam ser esse o momento para usar pano de saco e cinzas, não enquanto a criança ainda vivia.

Ao explicar sua atitude para seus servos, Davi deu a eles uma aula sobre a doutrina da Providência. Embora Davi tivesse ouvido com total clareza a declaração de Deus segundo a qual a criança morreria, não a considerando uma ameaça vazia, ele também tinha consciência dos feitos de Deus no passado, quando o Senhor mudara de ideia a respeito de juízos prometidos no momento em que o povo se voltou arrependido para ele.

Davi justificou as suas súplicas, dizendo: “Quem sabe se o SENHOR se compadecerá de mim, e continuará viva a criança?”. A expressão “quem sabe?” é a chave para compreender o prolongado jejum e as orações de Davi. Ela chama a atenção para o Deus absconditus, o “Deus escondido” cujo conselho secreto continua desconhecido para nós. Davi tinha ouvido as palavras do Deus revelatus, o Deus “revelado”, mas acalentava a esperança de que aquela não fosse a história completa. Quando descobriu que Deus não tinha nenhum plano não revelado, isso foi o suficiente para satisfazer à sua alma e se submeter ao “não” de Deus. Em certo sentido, a luta de Davi prefigura algo do sofrimento de Cristo no Getsêmani, quando Jesus pelejou com a vontade revelada do Pai, mas, em última análise, estava disposto a beber o cálice na sua totalidade.

Se compreendermos a providência de Deus e o amor do Deus da providência, poderemos adorá-lo com o sacrifício de louvor do qual ele é inerentemente merecedor, quando ocorrerem aqueles fatos que trazem dor, tristeza e aflição à nossa vida. Tal entendimento da providência é vital para todos que querem adorar a Deus. É uma adoração pela fé, enraizada na confiança. Davi confiava em Deus quanto ao seu próprio futuro e confiou em Deus quanto ao futuro de seu filho. Davi entendeu que ainda não tinha ouvido o restante da história e que todos os capítulos subsequentes seriam escritos por Deus.

Trecho extraído do livro A Mão Invisível, Editora Cultura Cristã.

Robert Charles Sproul (MDiv, PhD) foi fundador e presidente de Ligonier Ministries, pastor na Capela de St. Andrew, Sanford, Flórida. Foi um dos maiores autores reformados de nosso tempo e propagador da fé reformada. Escreveu muitos títulos, como a trilogia A santidade de Deus, A glória de Cristo e O mistério do Espírito Santo; os notáveis Como viver e agradar a Deus, Sola Gratia, Eleitos de Deus, os três cadernos best-sellers Verdades essenciais da fé cristã e quatro obras da série Estudos bíblicos expositivos (Mateus, Atos, Romanos e 1Pedro). Todos publicados pela Cultura Cristã. RC Sproul combateu o bom combate, acabou a carreira e guardou a fé (1939–2017).

Share this article
0
Share
Shareable URL
0
Share