Lucas 2.1-20
Introdução
A palavra natal é de origem latina (natale) e quer dizer nascimento. Ela é utilizada, em nossa sociedade, quase que exclusivamente para identificar a época e a data na qual é celebrado o nascimento de Jesus Cristo. Não encontramos esse termo na Bíblia, nem indicações de que os cristãos primitivos celebravam o aniversário do nascimento de Jesus. Entretanto, quase que a totalidade do mundo cristão comemora esta data no dia 25 de dezembro. Porque essa comemoração? É lícito celebrarmos uma festa que não é explicitamente citada na Bíblia?
I. As celebrações bíblicas
Inegavelmente, o nascimento de Jesus Cristo foi alvo de registros especiais e também de celebrações, na ocasião. A Palavra de Deus gravou esses acontecimentos para a nossa instrução.
Primeiramente, temos o anúncio aos pastores, uma categoria humilde, mas que tem o privilégio de receber “em primeira mão” a boa nova do nascimento (Lc 2.10-11). Depois que testemunham a “multidão da milícia celestial” (v.13), adorando a Deus em conjunto com os anjos, o entusiasmo dos pastores é demonstrado na iniciativa tomada (v.15) – “… e, ausentando-se deles os anjos para o céu, diziam os pastores uns aos outros: Vamos até Belém e vejamos os acontecimentos que o Senhor nos deu a conhecer”. Certamente, uma grande celebração do Natal.
Depois, temos o registro da visita dos magos, em Mateus 2.1-11. É exatamente nessa passagem que somos informados do medo do rei Herodes, com relação ao Cristo, que haveria de nascer. Ele procura se certificar da exatidão das profecias, interrogando os estudiosos das Escrituras. Pergunta onde nascerá o Messias, e recebe a resposta: “Em Belém da Judeia, responderam eles, porque assim está escrito por intermédio do profeta: ‘E tu, Belém, terra de Judá, não és de modo algum a menor entre as principais de Judá; porque de ti sairá o Guia que há de apascentar a meu povo, Israel’” (compare Mq 5.1-4 com Mt 2.5-6).
Herodes mente para os magos, dizendo que queria adorá-lo (Mt 2.8), quando, na realidade, queria matar o Messias (v.16). Mas Jesus é livrado dessa morte prematura, que não estava nos planos de Deus. Nessa passagem, aprendemos que os magos celebraram o Natal de Jesus “com grande e intenso júbilo” (v. 10-11).
II. O Natal na História
Retroagindo na história da Igreja, vamos encontrar Clemente de Alexandria, no 2º século depois de Cristo, citando as diversas opiniões que existiam na ocasião, sobre a data do nascimento de Jesus. No 3º século, Hipólito, bispo de Roma, indicou a data de 2 de janeiro para comemorar o nascimento de Jesus, mas a opinião não foi uniformemente aceita. Ao fim do 4º século, já encontramos registros de que as igrejas promoviam trabalhos especiais, em comemoração conjunta ao nascimento e ao batismo de Cristo, que, segundo as opiniões da época, haviam ocorrido na mesma data, em anos diferentes.
No 5º século, Agostinho escreveu:”…de acordo com a tradição, ele nasceu no dia 25 de dezembro”. Essa se tornou a data aceitável para as igrejas do ocidente, sendo que, no oriente, a data observada ficou firmada no dia 6 de janeiro.
A celebração do Natal, por certo, assimilou alguns costumes existentes nas nações que iam recebendo o cristianismo. Entretanto, muitos destes costumes, que eram pagãos em sua origem, foram se transformando e, vencidos pelo cristianismo, enquadraram-se na cultura de celebração do Natal.
Os reformadores do século 16 aceitaram a celebração do Natal como uma legítima expressão de adoração cristã, dando assim continuidade à tradição.
III. As distorções da celebração do Natal
Uma antiga revista brasileira, Manchete, costumava publicar traduções semanais das colunas do cronista e humorista ArtBuchwald. Uma destas colunas foi intitulada: “Deve-se permitir, às igrejas, abrirem no dia do Natal?” Nela o autor descrevia um evento fictício no qual “um grupo de cidadãos se organizou para protestar a maneira como certas igrejas estão tentando transformar o Natal em um feriado religioso!” O porta-voz do grupo, inventado, presta então as seguintes declarações ao ArtBuchwald, na suposta entrevista:
“Bastante dinheiro, tempo e propaganda foram colocados na preparação do Natal, para deixarmos que uma pequena minoria estrague o evento usando esse dia para ir à igreja”. “Não somos contra igrejas,” diz o personagem fictício, “mas somos terminantemente contra estas igrejas permanecerem abertas no dia dedicado ao nosso faturamento…”
Apesar de a crônica desse jornalista estar obviamente carregada de humor, é triste verificarmos a aproximação da história narrada com a nossa realidade. O Natal tem sido distorcido e seu verdadeiro espírito esquecido. Suas bases e origens foram relegadas a um segundo plano.
Anos atrás, a prestigiada revista Time publicou um artigo mostrando a diferença de ênfases, na celebração de Natal, existente entre os dias atuais e a prática de algumas décadas passadas. Diz a revista que antigamente se pensava no relacionamento do homem para com Deus; enquanto que agora, pensa-se em termos do relacionamento do homem para com os outros homens. O foco da história de Natal foi esquecido e esse fato é refletido nas decorações e slogans natalinos da atualidade. Realmente, que melhor exemplo para isso do que os cartões que dizem apenas: “Boas Festas”?
IV. As condenações à celebração do Natal e algumas respostas
A. Posições negativas à celebração do Natal
Nem todos gostam do Natal. Alguns chegam a odiá-lo, como Herodes. A literatura traz até alguns personagens que ficaram famosos por esse motivo. Por exemplo, Ebenezer Scrooge, um homem rico, avarento, e que desprezava crianças pobres e teve sua visão mudada depois de um sonho; e Grinch, uma criatura mal-humorada, que odeia o Natal e faz de tudo para impedir que ele seja comemorado, mas sem sucesso.
Alguns cristãos não gostam da celebração do Natal. É verdade que eles não têm nada a ver com os personagens acima. Não são egoístas ou mesquinhos, mas não aprovam a celebração do Natal, quer pela falta de menção explícita na Bíblia, quer pelo número de simbolismos e regionalismos incorporados à celebração (neve, árvore, velas, rena, presentes, etc.). Outros colocam objeção ao dia da celebração ou à separação de um dia específico para tal. Assim, as opiniões contra a celebração são, não apenas contra as características eminentemente comerciais do feriado (esse viés sempre foi um legítimo campo de batalha dos cristãos), mas somos alertados de que o Natal não é nada mais do que um feriado pagão assimilado pela igreja medieval, e que persiste no campo evangélico apenas por desconhecimento do seu histórico.
Alguns apresentam razões teológico-históricas para a objeção e indicam que expoentes reformados, como John Knox, posicionaram-se contra o Natal. Até João Calvino é citado como base para ser contra o Natal.
B. Posições positivas à celebração do Natal
Não achamos, entretanto, que a Bíblia aprove essa condenação à celebração. Pelo contrário, a Escritura é enfática em sua colocação sobre a importância histórica e teológica do nascimento de Cristo. Quanto à posição de Calvino, pode ser extraída de uma fonte primária. Trata-se de uma carta dele ao pastor da cidade de Berna, Jean Haller, de 2 de janeiro de 1551. Nela, Calvino escreveu: “Antes da minha chamada à cidade, eles não tinham nenhuma festa, exceto no dia do Senhor. Desde então eu tenho procurado moderação a fim de que o nascimento de Cristo seja celebrado”.
Em outra carta, de março de 1555, para os Magistrados (Seigneurs) de Berna, que eram contra a celebração do Natal, Calvino diz: “Quanto ao restante, meus escritos testemunham os meus sentimentos nesses pontos, pois neles declaro que uma igreja não deve ser desprezada ou condenada porque observa mais festivais do que outras. A recente abolição de dias de festas resultou apenas no seguinte: não se passa um ano sem que haja algum tipo de briga e discussão; o povo estava dividido a ponto de desembainharem as suas espadas”.
No contexto, Calvino parece indicar que os oficiais que haviam abolido a celebração tinham boas intenções de eliminar a idolatria (precisamos nos lembrar da situação histórica, que era a necessidade de dissociação do catolicismo romano), mas parece igualmente claro que ele indica que, se a definição estivesse em suas mãos, teria agido de forma diferente.
Historicamente, Knox e a Igreja Escocesa seguiram a opinião dos oficiais de Genebra. Ou seja, em seu contexto histórico, de se dissociar de tudo que era catolicismo, reforçou a abolição das festividades, nas igrejas. Mas Knox não representa o centro da tradição reformada. Ele também rejeitou instrumentos musicais, cânticos, e várias outras formas de adoração. Será que os que se posicionam contra o Natal estão dispostos a segui-lo em tudo, como parâmetro infalível?
O Rev. Dr. Hermisten aponta, também, que em Genebra os magistrados determinaram que a Ceia fosse celebrada no Natal, na Páscoa, no Pentecostes e na Festa das Colheitas. A conclusão óbvia é a citada pelo Dr. Hermisten: “As cinco festas da Igreja Reformada eram: Natal, Sexta-Feira Santa, Páscoa, Assunção e Pentecostes”. Em essência, não podemos dizer que não houve celebração do Natal, em Genebra.
O Sínodo de Dort considerou o Natal como uma data a ser observada como dia festivo e no qual os ministros deveriam se empenhar para preparar sermões que abordassem o tema.
J. Gresham Machen um grande teólogo reformado, também reconhece a propriedade e os benefícios da celebração do Natal, ainda que, em outro trecho indique a prioridade da celebração da morte de Cristo. Sobre o Natal, ele escreveu: “Eu não quero dizer que é errado comemorarmos o nascimento de Jesus. Nós celebramos o Natal e está correto fazermos isto. Felizes nesta época de Natal, que nós acabamos de passar, foram aqueles que não tiveram momentos de festividade mundana, mas um tempo de comemoração da vinda de nosso Salvador bendito a este mundo” (God Transcendent, The Banner Of Truth Trust).
V. A soberania de Deus no Natal
Em Gálatas 4.4-5, lemos: “Vindo, porém a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos”.
A expressão “plenitude do tempo” indica que Deus, soberanamente, trabalhava na história, preparando todas as condições para o ponto central na história da humanidade – a vinda do Filho de Deus; o Natal de Cristo Jesus, iniciando sua vida e posterior ministério de concretização do plano de salvação.
Com efeito, o império grego, de Alexandre o Grande (c. 330 a.C.), disseminou a língua e a cultura grega. Por cerca de 900 anos a região do Mediterrâneo recebeu uma civilização e uma cultura homogênea – o grego passou a ser a língua falada, pois os conquistadores obrigavam os conquistados a aprenderem essa língua, na qual todos os documentos e transações comerciais eram realizados. O Antigo Testamento foi traduzido para o grego (a versão Septuaginta). Quando Cristo nasceu, o mundo estava “maduro” para a escrita do Novo Testamento e a disseminação da mensagem de salvação, em grego comum – o falado pelas pessoas (Koinê), cruzando diferentes nacionalidades e nações.
Os conquistadores romanos (c. 30 a.C.), por outro lado, deixavam as nações conquistadas conservarem traços de sua cultura e religião; não impingiram a sua linguagem (o latim); mas estruturaram o seu império com um sistema de legislação e de vias e rotas comerciais, nas quais o direito de ir e vir, uma raridade no mundo antigo, experimentou uma segurança nunca dantes vista (a chamada pax romana).
Nessa situação, nasceu Jesus e isso, também, facilitou a disseminação da mensagem salvadora do evangelho. Era a soberania de Deus, como condutor da história, operando a “plenitude dos tempos”.
VI. O verdadeiro “espírito de Natal”
O mesmo texto, em Gálatas, diz “Deus enviou”. Cumprindo todas as profecias, nasceu Jesus. E aqui temos o propósito real do Natal: não são as canções, a mercantilização e mesmo o sentimentalismo fora de Cristo, que são sinônimos desta estação. Esses tendem, até, a obscurecer o significado real deste dia. A Bíblia diz que ele nasceu “para reunir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de filhos”.
Este é o propósito real do Natal. Deus, mandando o seu Filho para redimir aqueles que estão sob a maldição do pecado. Este é o verdadeiro milagre e o verdadeiro presente de Natal!
O Natal é muito mais do que um congraçamento entre os “homens de boa vontade”, pois é, na realidade, “boa vontade para com os homens” da parte de Deus. Canta-se o hino natalino, Cantai que o Salvador chegou! Se esta canção está em nossos corações, a falta de esperança se transformará em alegria e o vazio será preenchido com vida. Não fará muita diferença se estivermos numa multidão ou sozinhos. A alegria do Senhor e as vozes dos seus anjos ressoarão em nosso coração. Isto é o Natal!
Havendo a conscientização de que o Natal é, antes de tudo, nossa demonstração de gratidão pelo advento daquele que veio salvar a nós, pecadores; daquele que veio nos reconciliar com Deus; daquele que veio e venceu a morte, podemos dizer que assim o Natal estará sendo celebrado apropriadamente e de forma legítima.
Nós, evangélicos, devemos utilizar esta ocasião como uma oportunidade dada por Deus para adorarmos a ele e testemunharmos do seu nome ao mundo.
Conclusão
O coração da mensagem do Natal é: Jesus, O REI, nasceu! Os anjos, os pastores e os magos – todos vieram adorar a um Rei – O Rei dos reis, o Senhor dos senhores! A grande mensagem do Natal é que todos nós somos chamados a adorar ao Rei. Portanto, apesar de haver manifestações contrárias, não há fundamento para que não celebremos o Natal com grande alegria, louvando a Deus por ter enviado seu Filho ao mundo para morrer em nosso lugar e reinar soberano.
Aplicação
Se você já é um cristão, o desafio é esse: honre a Jesus como seu Rei, como um cidadão do seu reino. Não estou sugerindo que você tenha de dar uma oferta especial bem rica (ouro, incenso ou mirra) a alguém ou à igreja – esse evento histórico já passou. Mas você deve examinar a sua vida e verificar qual a parte dela que você tem preservado para mantê-la sob seu controle.
Jesus deve reinar em todo o seu ser, no seu relacionamento, sem rancores, sem raiva; na sua visão do dinheiro, sem egoísmo, sem avidez pelo conforto, pela última novidade; na sua seletividade dos divertimentos, dos programas de televisão, das músicas; na sua guarda contra a pornografia, contra a imoralidade; na sua observância quanto aos claros preceitos de Deus em sua Palavra.
Texto extraído da revista Nossa Fé – O que é isso? – Parte 1, Editora Cultura Cristã.
Francisco Solano Portela Neto (ThM) é professor-coordenador de Educação Cristã no no Centro Presbiteriano de Pós-graudação Adrew Jumper e professor de Teologia Sistemática no Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição, em São Paulo.