Desde que Martinho Lutero, o famoso reformador do século 16, afixou suas 95 teses na porta do castelo de Wittenberg, a doutrina da justificação somente pela fé tem sido uma das grandes verdades da fé reformada. Antes de continuarmos, definiremos a expressão doutrina da justificação pela fé somente.
Em algum ponto da existência, todos devem colocar-se na presença de Deus para serem julgados. Há dois vereditos possíveis: culpado ou inocente. Ou, de acordo com os termos bíblicos, Deus irá condenar ou justificar aquele que se colocar diante dele. Para que Deus justifique alguém, ele requer uma perfeita e absoluta justiça, ou seja, obediência à sua lei. Porém, o homem é pecador e está sob a maldição de Deus. Como um homem pecador pode sair do julgamento de Deus com outro veredito a não ser o de culpado? A resposta está na doutrina da justificação pela fé somente.
O Breve Catecismo de Westminster, escrito no século 17 e usado hoje entre as denominações presbiterianas mais conservadoras, define justificação como “um ato da livre graça de Deus, no qual ele perdoa todos os nossos pecados e nos aceita como justos diante dele somente por causa da justiça de Cristo a nós imputada e recebida apenas pela fé” (P/R 33). Vemos aí os pontos básicos da doutrina da justificação somente pela fé.
Justificação do pecado
Como um pecador pode ser justificado à vista de Deus? Outro homem precisa tomar seu lugar e oferecer a perfeita obediência ou justiça que Deus requer para justificá-lo. Isso é o que Jesus fez para aquele que o busca pela fé. Jesus viveu por causa dos pecadores. Em outras palavras, por meio da sua vida, Jesus foi perfeito e totalmente obediente à vontade e à lei do seu Pai celestial. Jesus também sofreu as penalidades do pecado na sua vida terrena, que culminou com sua crucificação. Portanto, Jesus tanto sofreu a penalidade da lei como também oferece sua obediência perfeita àqueles que o buscam pela fé. E o Pai ressuscitou Jesus dentre os mortos, sinalizando que aceitou seu sacrifício perfeito e assegurando a vitória sobre o pecado e a morte.
O pecador não contribui em nada para sua justificação, para esse veredito de Deus. Por essas razões, o teólogo e poeta escocês do século 19, Horatius Bonar, escreveu certa vez: “Tuas obras, não as minhas, ó Cristo, falam docemente a este coração; anunciam que tudo consumado está. E meus medos elas desfazem”. Talvez agora o brado da Reforma comece a fazer mais sentido.
Sola gratia
É somente pela graça de Deus (sola gratia) que ele justifica o pecador. Deus tem todo direito de condenar o pecador, mas, em vez disso, mostra-se misericordioso e lhe dá a conhecer sua graça. A justificação se dá por meio de Cristo somente (solus Christus), pois é a obra de Cristo – sua vida, morte e ressurreição – que serve como base judicial para o veredito de justiça do cristão. Então, somente a fé (sola fide) justifica o pecador. Assim, não é pela obediência ou pelas boas obras do pecador. De outro modo, é preciso que o pecador contemple exclusivamente a pessoa e a obra de Cristo para receber esse veredito de justiça em vez do veredito de condenação que ele merece. Esses três pontos são a base da doutrina da justificação somente pela fé.
João Calvino, o reformador da segunda geração do século 16, explicou que “a menos que em primeiro lugar apreendas em que posição estás diante de Deus e a natureza do juízo dele em relação a ti, não tens nem base sobre a qual possas estabelecer sua salvação nem uma base sobre a qual erigir a piedade para com Deus”. Era por essa razão que Calvino acreditava que a justificação era “o eixo em torno do qual a religião gira”.[1] Não é de admirar que um teólogo reformado do século 17, Joahan Heinrich Alsted, um dos delegados do Sínodo de Dort (1619) do qual saíram os “cinco pontos do calvinismo”, escreveria mais tarde que a doutrina da justificação é o articulus stantis et cadentes ecclesiae, “o artigo sobre o qual a igreja se firma ou cai”.
A doutrina da justificação pela fé
Ao pesquisar os dados bíblicos, podemos resumir os pontos principais da doutrina da justificação somente pela fé:
- A justificação é a declaração legal na qual Deus julga aquele que contempla Cristo pela fé como sendo justo aos seus olhos.
- Devemos ser justificados pela fé somente porque, como consequência de o pecado estar permanentemente presente, somos incapazes de prestar a Deus a obediência que ele requer. Portanto, nossa fé não é introspectiva, olhando para dentro a fim de ver o que podemos fazer para nos salvar. Em vez disso, nossa fé é extrovertida, olhando para fora de nós mesmos para o que Cristo fez.
- A vida, morte e ressurreição de Cristo são a base fundamental e judicial para nossa justificação.
- Nossa justificação pela fé somente assegura nossa permanência diante de Deus, tanto no presente quanto no futuro, e assegura que recebemos a vida eterna.
O marcante brado da Reforma
Ao refletir sobre esse resumo, é essencial reconhecermos que a doutrina da justificação somente pela fé foi o principal e marcante brado da Reforma do século 16. Embora outros teólogos tenham lançado essa base, foi Lutero, a palha que quebrou as proverbiais costas do camelo. Um contemporâneo de Lutero, o padre católico-romano chamado Johann Tetzel, andava vendendo indulgências.
Uma indulgência deveria ser como um “Obrigado!”, por assim dizer, pois era uma doação para a construção da catedral de São Pedro em Roma. O papa distribuía essas indulgências supostamente para reduzir a quantidade de tempo que as pessoas teriam de passar no purgatório ou para libertar parentes falecidos do purgatório. Tetzel cunhou a frase: “Quando uma moeda no cofre cai, a alma do purgatório sai!” Foram esses acontecimentos que, finalmente, levaram Lutero a escrever suas 95 teses e afixá-las na porta do castelo de Wittenberg na véspera do dia de Todos os Santos, 31 de outubro de 1517. Com a então recente invenção da imprensa, pessoas rapidamente copiaram e distribuíram as teses de Lutero por toda a Europa, e em pouco tempo nasceu a Reforma.
As confissões de fé e catecismos
Durante a Reforma, tanto os luteranos – os seguidores de Lutero – quanto os teólogos reformados – homens como Ulrique Zuínglio, João Calvino, Zacharias Ursinus, Heinrich Bullinger, Caspar Olevianus e muitos outros – viram as verdades que Lutero expôs e concordaram com elas. Em última análise, eles concordaram com Lutero porque reconheceram que essas verdades eram o ensinamento das Escrituras. Os reformadores leram as páginas das Escrituras, particularmente as cartas de Paulo, e se convenceram da verdade da justificação somente pela fé. Esses teólogos viram a codificação dessa doutrina nas confissões de fé e nos catecismos da Reforma.
Nas confissões de fé e nos catecismos da Reforma a seguir encontramos a afirmação da doutrina da justificação pela fé somente.
Confissão de Augsburgo (1530), luterana:
Nossas igrejas também ensinam que os homens não podem ser justificados diante de Deus pela sua própria força, méritos ou obras, mas são gratuitamente justificados por causa de Cristo, por meio da fé, quando eles creem que são recebidos no favor e que seus pecados são perdoados por meio da fé, quando cremos que Cristo sofreu por nós e que por causa dele nosso pecado é perdoado e justiça e vida eterna são dadas a nós. (§4)
Confissão Reformada Francesa (1559):
Cremos que somos feitos participantes dessa justificação pela fé somente, como está escrito: “Ele sofreu pela nossa salvação, para que todo o que nele crê não pereça”. E isso é feito quando nos apropriamos para nosso uso das promessas de vida que são feitas a nós por meio dele e sentimos o efeito delas quando as aceitamos, sendo assegurados que estamos estabelecidos pela palavra de Deus e que não seremos enganados. Assim, nossa justificação por meio da fé depende das promessas gratuitas pelas quais Deus declara seu amor por nós e testifica dele.
Confissão Belga (1561), holandesa reformada:
Cremos que nossa salvação consiste na remissão dos nossos pecados por causa de Jesus Cristo, e que isso significa para nós a justiça diante de Deus; como nos ensinam Davi e Paulo, declarando ser esta a felicidade do homem, que Deus imputa justiça a ele independentemente de obras. (§ 23).
Catecismo de Heildelberg (1563), holandês reformado:
P. Por que você diz que é justo somente pela fé? R. Não que eu seja aceitável a Deus por causa do mérito da minha fé, mas porque apenas a satisfação, a justiça e santidade de Cristo são a minha justiça diante de Deus; e que eu não a posso receber e aplicar a mim mesmo de qualquer outro modo, a não ser pela fé somente (P./R. 61)
Trinta e Nove Artigos da Igreja Anglicana (1571):
Somos reputados como justos diante de Deus somente pelo mérito do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, pela fé, e não pelas nossas próprias obras ou méritos: Portanto, que somos justificados pela fé somente é uma doutrina mui salutar e cheia de consolação. (§ 11)
Confissão de Fé de Westminster (1647), presbiteriana; Segunda Confissão de Londres (1689), batista:
A fé, assim recebendo e assim se firmando em Cristo e na justiça dele, é o único instrumento de justificação (§ 11. 2).
Ao considerarmos essa lista comparada de confissões e catecismos, tanto da época da Reforma quanto da pós-Reforma, podemos dizer que os teólogos europeus, da Alemanha, da França, da Holanda, da Escócia e da Inglaterra, e de diversos corpos de igrejas – luterana, reformada, anglicana, batista e presbiteriana – atestam a doutrina da justificação somente pela fé. A esse respeito, a doutrina da justificação somente pela fé não era um ensinamento obscuro e limitado a pequenas regiões do mundo, mas pessoas em toda a Europa do século 16 e após a atestavam, ensinavam e confessavam amplamente.
J. V. Fesko
Texto adaptado do livro Série Fé Reformada – vol. 4, Editora Cultura Cristã.
[1] CALVINO, João. Institutes of the Christian religion. Org. John T. McNeill. Trad. Ford Lewis Battles. Filadélfia: Westminster Press, 1960, 3,11.1.