As confissões da era da Reforma são um importante ponto de referência para o estabelecimento das doutrinas-chave da Reforma e, a esse respeito, sua unidade essencial de abordagem é mais significativa do que as diferenças contidas em declarações de fé específicas. Fica imediatamente evidente que o caráter distintivo da Reforma pode ser visto com mais clareza no que as confissões têm a dizer sobre o modo da salvação. Isso pode ser resumido como segue.
O caráter radical da Queda
A condição atual da raça humana é de separação de Deus, causada não por ele, mas pela desobediência dos primeiros seres humanos. Ninguém no século 16 questionava a veracidade histórica do relato bíblico; protestantes e católicos acreditavam que tinham existido um verdadeiro Adão e uma verdadeira Eva que moravam num jardim do Éden localizado em algum lugar no que hoje é o Iraque. O pecado havia entrado no mundo porque esse casal havia sucumbido à tentação de Satanás, que lhes prometeu que, se comessem o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal, eles se tornariam como Deus. Eles deram ouvidos à sua tentação e, como resultado, Deus os expulsou do jardim, embora não sem lhes dar alguma esperança de que futuramente seriam redimidos.
Então, a pergunta passou a ser: Quão completa foi a separação entre Deus e suas criaturas humanas? Adão e Eva foram criados à imagem e semelhança de Deus e mantiveram uma posição especial na criação, mesmo depois de terem caído. Antes da Reforma, a maioria dos teólogos gravitava em torno da crença de que os primeiros seres humanos haviam perdido a semelhança de Deus, mas preservado sua imagem, tornando possível prever a restauração da semelhança em algum momento futuro. Essa crença era baseada no pressuposto de que as palavras imagem e semelhança se referiam a duas coisas diferentes, mas a redescoberta do hebraico tornou essa distinção insustentável. O idioma hebraico funciona usando sinônimos em paralelo; portanto, imagem e semelhança são, na verdade, duas palavras que significam a mesma coisa. A imagem/semelhança foi corrompida ou destruída pela Queda, mas não pode ser dividida em duas partes constituintes.
A crença mais comum entre os católicos era que a imagem/semelhança de Deus havia sido manchada, mas não destruída. A estrutura fundamental ainda estava lá e o dano poderia ser reparado pela operação da graça divina, e para isso existia a igreja. A visão minoritária era que a imagem/semelhança havia sido arruinada além da possibilidade de reparo. Nenhuma quantidade de graça poderia restaurá-la ao que havia sido antes da Queda, e não era isso que a mensagem do evangelho prometia.
Em vez disso, era necessário um novo nascimento, um novo começo que matasse o “velho homem” (a imagem/semelhança arruinada) e o substituísse pelo Espírito Santo que habita em nós. Foi essencialmente isso o que o apóstolo Paulo disse quando escreveu aos gálatas (Gl 2.20): “Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim”. O “velho homem” não desapareceu, é claro. Ele continua a existir e a causar problemas para o cristão, que tem de lutar contra ele numa espécie de guerra espiritual que é detalhadamente descrita no Novo Testamento, especialmente nas cartas de Paulo. Somente a morte física e a ressurreição espiritual colocarão um fim a essa luta, mas a presença de Cristo na vida de uma pessoa permite que ela viva de acordo com a vontade de Deus aqui e agora – as primícias da vida eterna estão presentes e ativas nela.
Se essa visão radical da pecaminosidade for aceita, é óbvio que não pode haver lugar para cooperação humana ou melhoria na vida espiritual. Qualquer conquista desse tipo seria elaborada sobre uma base insegura e, como a casa construída na areia, acabaria em colapso, por mais sólida e bonita que parecesse. O argumento da Reforma, seguindo o apóstolo Paulo, era que somos uma “nova criação” em Cristo – a velha passou e todas as coisas foram feitas novas nele.
O caráter radical da salvação
Como não é possível crescer numa nova vida em estágios complementares, essa nova vida deve ser completa em si mesma desde o início. Ser cristão é, portanto, nascer de novo. O novo nascimento não descarta a necessidade de crescimento, mas é o crescimento do que já existe em princípio, não a adição de novos elementos que efetuam uma transformação gradual de um tipo de vida para outro. Essa nova vida não é autônoma. Não somos recriados como pequenos Adão e Eva, mas integrados à vida do novo Adão, que é Cristo. É nele, e somente nele, que somos salvos, porque, graças à sua justiça, revelada acima de tudo no sacrifício perfeito que ele fez pelos nossos pecados, podemos estar na presença de Deus Pai e sermos aceitos por ele como seus filhos.
O que havia sido concebido anteriormente como o resultado final de um longo processo que provavelmente teria de continuar após a nossa morte física ao longo de um período adicional de purificação no purgatório agora era visto como um presente, concedido a nós não como recompensa por qualquer coisa que tivéssemos feito para merecê-lo, mas à luz da nossa fé em Cristo. É porque reconhecemos nossa necessidade e aceitamos que ela foi suprida em Cristo que recebemos o presente da salvação. É isto o que os reformadores entendem por justificação – aceitação na presença de Deus, não como pessoas que venceram o pecado em sua vida, mas como pecadores que foram revestidos da justiça de Cristo.
O caráter radical da igreja
A igreja não é um império espiritual presidido por um líder infalível que representa Cristo na terra, mas uma companhia invisível de crentes fiéis que estão unidos pelo Espírito Santo. Essa comunhão se encarna em formas visíveis, mas nenhuma delas pode reivindicar autoridade exclusiva ou perfeição espiritual, e todas são essencialmente provisórias. O ministério ordenado nessa igreja invisível é principalmente o de pregar a Palavra de Deus, que simultaneamente evangeliza os não convertidos e ministra aos crentes. Os sacramentos do batismo e da Ceia do Senhor são extensões do ministério da Palavra e não podem ser separados dela. Em nenhum sentido são portadores mágicos da graça divina que podem ser concedidos ou retidos por uma hierarquia determinada para afirmar seu próprio controle.
Na igreja, todos os membros são iguais, embora alguns tenham dons e responsabilidades específicos que devem acompanhá-los. A ordem da igreja é flexível e pode ser adaptada para atender a diferentes circunstâncias. Os protestantes discordam sobre quanta concessão é possível ou desejável na prática, mas algumas vezes eles conseguiram elaborar um padrão de governo da igreja que é aceitável para uma ampla maioria.
Muitas atividades importantes, como a tradução da Bíblia e a evangelização, são realizadas por organizações interdenominacionais ou paraeclesiásticas que podem dispensar alguns dos requisitos de determinados órgãos da igreja e geralmente se unem numa base comum de fé à qual todos podem aderir com uma boa consciência. Atualmente, os leigos costumam passar de uma denominação para outra com pouca dificuldade, e o reconhecimento mútuo dos ministérios ordenados está crescendo, embora ainda esteja longe de ser universal. Num mundo secular, especialmente em lugares em que a igreja é perseguida por regimes hostis, os protestantes provaram ser altamente adaptáveis e muitas vezes prosperaram diante da oposição, um curioso desenvolvimento que, em alguns aspectos, aproximou-os da realidade da igreja primitiva mais do que os reformadores jamais imaginaram.
O caráter radical da autoridade espiritual
Finalmente, e talvez o mais importante, todos os protestantes acreditam que a autoridade espiritual repousa somente em Deus e é revelada a nós em sua Palavra, a Bíblia. Hoje, todos aceitam que a Bíblia deve ser interpretada em seus idiomas originais, levando em consideração o contexto em que a revelação foi dada. Há um amplo espectro aqui para análises detalhadas, e não surpreende que muitas teorias diferentes tenham sido propostas com relação à composição e interpretação dos textos sagrados. Isso levou a uma ênfase exagerada em detalhes que são questionáveis e podem contradizer o testemunho geral da Reforma mesmo em questões centrais, como a doutrina da justificação somente pela fé.
É preciso fazer aqui uma distinção entre as teses de professores e acadêmicos individuais, que devem permanecer abertas ao debate, e o consenso da tradição teológica protestante, que, conquanto não seja infalível, continua sendo o ponto de referência para medir novas ideias. Sempre há o perigo de os indivíduos levarem as coisas ao extremo, e movimentos espirituais aberrantes não são incomuns no mundo protestante, mas a maioria das pessoas acredita que a verdade surgirá quando seus ensinamentos e práticas forem submetidos ao teste da conformidade com a Bíblia, e, na maioria das vezes, as posições pouco convencionais ou heréticas tendem a desaparecer assim que o teste é aplicado.
Portanto, não há necessidade de um magistério infalível para exercer a disciplina da igreja, que geralmente emergirá por vontade própria e será aceita por consenso. Remanescentes de tais esquisitices podem sobreviver às margens do protestantismo, mas raramente são fortes o suficiente para produzir seus próprios movimentos de longa duração.
O trabalho dos reformadores protestantes dos séculos 16 e 17 não foi perfeito, como eles mesmos teriam sido os primeiros a admitir. A palavra de ordem deles era que a igreja estava sempre precisando de reforma (ecclesia semper reformanda est), e provavelmente eles teriam ficado desconcertados se soubessem que suas formulações particulares da verdade cristã adquiririam uma posição canônica, e até mesmo uma infalibilidade de fato nos tempos posteriores.
No entanto, segundo seus princípios fundamentais, eles acreditavam que haviam descoberto a verdade que Deus havia revelado e que a verdade permaneceria essencialmente a mesma através do tempo e do espaço. Se pudessem retornar à vida hoje, sem dúvida seriam surpreendidos pelas formas exteriores das igrejas que reivindicam sua herança, mas no evangelho da salvação pela graça, somente pela fé, estariam em harmonia com aqueles que os sucederam e, em muitos casos, provavelmente os exortariam a serem ainda mais fiéis à sua mensagem do que afirmam ser, não para glorificarem seus ancestrais da Reforma, mas para que o nome de Jesus Cristo seja verdadeiramente proclamado e exaltado na terra até que ele volte.
Trecho do livro Fazendo teologia com os reformadores, de Gerald L. Bray, Editora Cultura Cristã.