Pergunta 1. Qual é o seu único conforto na vida e na morte?
Resposta. Meu único conforto é que – corpo e alma, tanto na vida como na morte – não pertenço a mim mesmo, mas ao meu fiel Salvador, Jesus Cristo, que com o seu próprio sangue, pagou totalmente pelos meus pecados e me libertou completamente do poder do diabo, e assim ele me preserva, de modo que, contra a vontade de meu Pai celestial, nem um fio de cabelo poderá cair da minha cabeça, e também que todas as coisas devem cooperar para a minha salvação, e, portanto, pelo seu Espírito Santo ele também me garante a vida eterna e me torna sinceramente disposto e pronto a viver para ele daqui em diante.
Pergunta 2. Quais as coisas que você precisa saber para que, por desfrutar desse conforto, possa viver e morrer de modo mais feliz?
Resposta. Três coisas: a primeira, como são grandes o meu pecado e a minha miséria; a segunda, como posso ser salvo dos meus pecados e miséria; e a terceira, como posso expressar a minha gratidão a Deus por essa libertação.
A primeira pergunta é, sem dúvida, a mais famosa do Catecismo. Talvez até seja a única parte do Catecismo que a maioria dos cristãos (mesmo os reformados) já ouviu. Mas suponho que, se você tiver de ouvir apenas uma, essa é uma pergunta excelente.
A única pergunta de catecismo tão conhecida como essa é a primeira pergunta do Breve Catecismo de Westminster: “Qual é o fim principal do homem? O fim principal do homem é glorificar a Deus, e gozá-lo para sempre”. Já ouvi críticas ao Heidelberg por começar com o homem (“qual é o meu único conforto”) em vez de começar com a glória de Deus como o Westminster. Mas se quisermos mesmo ser rígidos, o Westminster pode ser criticado por começar com o que devemos fazer em vez de com o que Cristo fez por nós, como o Heidelberg.
Na verdade, ambos os catecismos começam de maneira apropriada. O Heidelberg começa com graça. O Westminster começa com a glória. Seria muito difícil pensar em duas palavras para descrever melhor o tema da revelação bíblica.
A primeira pergunta do Heidelberg é tão impactante por causa da palavra “único”. Se a pergunta fosse “o que conforta” você, essa seria uma pergunta gentil, mas pouco estimulante. Confortam-me coisas como o sono, biscoitos de chocolate, um bom livro e a música da banda The Mission. Mas quando o Catecismo pergunta qual é o seu único conforto, ele está visando a algo mais profundo. “Conforto” é a tradução da palavra alemã trost, que foi, por sua vez, traduzida como consolatio na primeira versão oficial latina. Trost está relacionado à palavra em inglês “confiança” e tem o significado da raiz de “certeza” ou “proteção”. Heidelberg está perguntando: “Qual é o seu consolo na vida? Qual é a sua única segurança real?”. A primeira pergunta do Heidelberg não só define o tema de todo o Catecismo (ver P/R 2, 52, 53, 57, 58), mas também coloca a questão mais importante que nós jamais enfrentaremos. O que permite que você suporte a vida e enfrente a morte sem medo? Seria o fato de você ler a Bíblia todos os dias? Seria o fato de você ir à igreja todos os domingos? Sua contribuição para os pobres? Ou a sua conta de poupança polpuda para a aposentadoria? Ou que você nunca cometeu qualquer um dos grandes pecados na vida?
Vivemos num mundo em que esperamos encontrar conforto em bens, orgulho, poder e posição. Mas o Catecismo nos ensina que o nosso único conforto verdadeiro vem do fato de que nós nem sequer pertencemos a nós mesmos. Isso é extremamente contracultural e contraintuitivo. Podemos suportar sofrimento e decepção na vida e enfrentar a morte e a vida por vir, sem medo de julgamento, não por causa do que fizemos ou o que nós temos ou de quem somos, mas pelo que não possuímos, ou seja, a nós mesmos.
A ênfase de Heidelberg no pertencer a Cristo é, provavelmente, herança de João Calvino. Algumas pessoas têm a impressão de que João Calvino era um homem dogmático, rígido e árido, mas na verdade, ele tinha um coração profundamente fascinado por Deus. Escute a batida do coração apaixonado de Calvino nesta passagem, que encontra eco no Catecismo de Heidelberg: “Nós não somos de nós mesmos: não deixemos, portanto, que a nossa razão nem a nossa vontade influenciem os nossos planos e ações. Nós não nos pertencemos: não vamos, portanto, definir como nosso objetivo a busca do que é conveniente para nós segundo a carne. Nós não somos de nós mesmos: na medida em que pudermos, vamos, portanto, esquecer de nós mesmos e de tudo o que é nosso. Por outro lado, pertencemos a Deus: vamos, portanto, viver para ele e morrer para ele. Somos de Deus: deixemos que a sabedoria e vontade dele, portanto, domine todas as nossas ações. Somos de Deus: façamos com que todas as partes da nossa vida conformemente se esforcem na direção dele como o nosso único objetivo legítimo”.[1]
A Pergunta 1 do Catecismo apresenta um modelo para toda a nossa existência. A primeira coisa que nós precisamos saber como cristãos é que pertencemos a Jesus e não a nós mesmos.
Mas saber tudo sobre conforto e alegria não tem tanta valia se não soubermos o que é necessário para viver e morrer nesse conforto e alegria. Pertencer a Jesus e não a nós mesmos significa conhecer três coisas: culpa, graça e gratidão. O restante do Catecismo segue esse esquema tríplice. Primeiro, vamos compreender o nosso pecado. Depois a nossa salvação. E, finalmente, como somos santificados para servir.
Todas as três coisas são necessárias. Se nós não temos conhecimento do nosso pecado – o que traz um verdadeiro senso de culpa – seremos por demais confiantes na nossa capacidade de fazer o que é certo e tornar o mundo um lugar melhor. Iremos ignorar o nosso problema mais fundamental, que não é falta de instrução, ou falta de oportunidade, ou a falta de recursos, mas o pecado e seu sofrimento resultante. Porém, se não conhecermos a maneira pela qual podemos ser libertos desse pecado e desse sofrimento – que vem pela graça de Deus – vamos tentar nos consertar com futilidades ou desistir em total desespero. E se não soubermos como agradecer a Deus, mostrando gratidão por essa libertação, viveremos numa bolha autocentrada, tendo a nós mesmos como o referencial, que não é de modo nenhum a razão pela qual Deus nos salvou dos nossos pecados e sofrimento. Se os cristãos se firmassem nessas “três coisas” juntas e não apenas em uma ou duas, estaríamos livres de um grande número de teologias incorretas e ideias erradas.
E não deixe de observar o pressuposto subjacente nessas duas primeiras perguntas: nós estamos destinados a viver e morrer no gozo desse conforto. O que bem poucos cristãos fazem é dar testemunho tanto do quanto a vida pode ser difícil e de quão pouco nós meditamos sobre o que significa pertencer a Cristo. Conforto não significa que Cristo faz todas as coisas ruins na vida desaparecerem. Conforto, como expresso por Ursino, “resulta de um determinado processo de raciocínio, no qual nós contrapomos algo de bom a algo de mal, que por uma consideração adequada desse bem, podemos mitigar a nossa tristeza e suportar pacientemente o mal”.[2] Em outras palavras, conforto coloca diante de nós um gozo maior para compensar os sofrimentos atuais e futuros.
Quando pensamos em viver e morrer em conforto, imaginamos cadeiras reclináveis que se adaptam perfeitamente ao nosso corpo, massagem nas costas e toda a comida que conseguirmos comer (sem engordar, é claro). Porém, o Catecismo tem em mente um tipo diferente de conforto, que é mais profundo, maior, mais abundante e mais doce. Encontramos esse conforto admitindo o nosso pecado em vez de desculpá-lo; confiando em Deus em vez de confiar em nós mesmos; e vivendo para dar graças em vez de recebermos os agradecimentos.
Texto extraído do livro As boas-novas que quase esquecemos, de Kevin DeYoung, Editora Cultura Cristã
Kevin DeYoung, ministro da Reformed Church of America, é pastor titular da University Reformed Church em East Lansing, Michigan, EUA.
[1] João Calvino, As Institutas, III, vii.1, trad. Waldyr Carvalho Luz. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2ª edição, 2006.
[2] The Commentary of Dr. Zacharias Ursinus on the Heidelberg Catechism, trad. G. W. Williard (1852; reimp., Phillipsburg, N. J.: Presbyterian and Reformed Publishing, 1985), 17–18.