Uma inspiradora história das cantatas
Vai chegando o fim do ano e os corais das igrejas dobram esforços para realizar um evento muito esperado, ao menos por alguns, a “Cantata de Natal”.
Na História da Música, “Cantata” é um tipo de composição vocal para uma ou mais vozes, com acompanhamento instrumental e, muitas vezes, também com coro e solistas. Esse gênero musical surgiu ali pelo século 16, firmando-se no século 17. O nome “Cantata” veio para diferenciá-la das “Toccatas” e “Sonatas”, peças puramente instrumentais.
Talvez a Cantata tenha sido uma das formas mais importantes de música vocal do período Barroco (1600–1750). Embora seja uma composição para coro, solistas e orquestra, cujo texto normalmente desenvolve uma história, a Cantata diferencia-se da “Ópera” pelo fato de que esta, embora contenha os mesmos “ingredientes”, é obra encenada, representada no palco por “cantores-atores”, contando a história que está sendo cantada. A Cantata não tem cenários nem atores.
Pois a Cantata, forma musical importante no Barroco, ficou quase esquecida nos períodos que se seguiram, o Classicismo e o Romantismo. Parece, porém, ter desejado retornar no século 20, por interesse de alguns poucos compositores. Talvez a Cantata mais conhecida, de período atual, seja a famosíssima “Carmina Burana”, do alemão Carl Orff (1895-1982). A propósito, Cantatas não são obras necessariamente sacras.
No Barroco, um dos maiores autores de Cantatas foi o luterano Johann Sebastian Bach (1685-1750), que as compunha para os domingos do ano todo, apropriadas para Advento, Natal, Epifania, Paixão, Páscoa, Pentecostes, ou para as celebrações locais da igreja S. Thomas, em Leipzig, Alemanha, onde foi responsável pela música por quase 30 anos.
Bach compôs Cantatas que formam cinco ciclos completos para o ano eclesiástico (sem contar suas cantatas não sacras), mais de 350 obras, entre elas a BWV [Iniciais em alemão do Catálogo das Obras de Bach, Bach Werke Verzeichnis ] 147, que inclui o famoso coral “Jesus, Alegria dos Homens”. Embora não tenha sido escrito para Natal, esse coral é muito cantado no Brasil neste período.
Veja que, por meio do “Jesus alegria dos homens”, voltamos às Cantatas de Natal contemporâneas, das nossas igrejas. Pode-se perceber que essas cantatas, as que nossos coros costumam cantar, têm traços comuns com a Cantata Barroca, embora seja outro tipo de composição musical. Têm acompanhamento instrumental, têm partes corais e podem ter partes solistas. Mas os recitativos foram substituídos por texto narrado, lido e não cantado. Boa parte dessas cantatas vêm dos Estados Unidos e são traduzidas. Ou são compostas por aqui, imitando o estilo norte-americano: uma introdução instrumental com eventual narração, seguida de uma parte coral, às vezes um trecho de uma canção de Natal conhecida, nova narração, canções compostas ou adaptadas sucedendo-se.
Reconheço que o modelo pode servir de estímulo para o coro local. Sei que a igreja pode ser enriquecida pela noite – ou dia – da Cantata, e é mais uma razão para atrair visitantes. Parte dos cantores gosta do desafio e se anima por cantar no grupo, e isso é muito bom. Mas pergunto-me se vale a pena, mesmo, tanto tempo de preparo para um único dia, já que, passado o “dia da Cantata”, ela não mais será cantada, ao menos naquele ano, passado o Natal. Mesmo que, no nosso calendário cristão, o Natal seja um período de 12 dias, que começa no dia 25 e vai até 6 de janeiro, o dia da Epifania. Pergunto-me se não seria mais valioso para a comunidade cantar mais e ouvir menos. Participar ativamente, tanto do culto regular quanto dos dias especiais.
A Reforma nos lembra que no culto se estabelece um diálogo: para Lutero o culto não era um sacrificium oferecido a Deus pelos fiéis, mas sim um beneficium, um presente de Deus aos seus filhos. A graça de Deus e sua bênção chegam ao seu povo pela Palavra e pelos Sacramentos (beneficium). As orações, os cânticos e ações de graças da comunidade elevam-se até ele (sacrificium).
O culto reformado é um encontro da Igreja com seu Senhor, encontro este bipolarizado entre Wort, Palavra (leitura e prédica) e Antwort, Resposta (cânticos, responsos e oração da comunidade). Com a concepção do sacerdócio geral de todos os crentes, não mais se aceita que os fiéis permaneçam passivos no culto, e caberia à música papel importante nos dois polos, isso é, no culto bipolarizado entre Palavra e Resposta, não cabe à música papel apenas no segundo polo, o da resposta do fiel ao convite divino. Em outras palavras, se o ser humano fala a Deus por meio dos cânticos religiosos, Deus pode falar ao ser humano também por meio dos cânticos.
Talvez possamos criar nossa própria cantata de Natal: escolhemos alguns dos cânticos tradicionais, outros mais novos, e vamos ensaiando-os e cantando a cada culto desde o fim de novembro, no período do Advento, pois (os quatro domingos antes do Natal) durante o Advento ficam bem os cânticos que falam da vinda de Jesus, ou das profecias quanto a sua vinda. Mais próximos do dia do Natal, cantamos os cânticos que falam do nascimento, mesmo. E para o dia “da Cantata”, juntamos tudo, alternamos com leituras apropriadas, e pronto! Aí está nossa própria Cantata de Natal! Feita em casa! Nesse caso toda a igreja poderá tomar parte, cantando alguns dos cânticos ou uma e outra estrofe! E certamente ela – a congregação – poderá juntar suas vozes às outras vozes, dos instrumentos, dos coralistas, num grande cântico final comunitário! Que tal?
Assim: “Vai uma nova cantatinha aí”?
Texto extraído do Jornal Brasil Presbiteriano, Ano 63 nº 805 – Dezembro de 2021 O Maestro Parcival Módolo é coordenador da divisão de arte e cultura do Instituto Presbiteriano Mackenzie e coordenador do curso livre de música sacra do Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição (JMC), na cidade de São Paulo. Parcival é membro da 2ª IP de Americana, SP.