Nossa missão é contribuir para a reforma da igreja no Brasil por meio da literatura

Uma carência abençoadora

A origem deste ofício eclesiástico deve ser buscada no texto de At 6.1-7. Embora saibamos que nem todos concordem com isso[1] e outros não se decidam,[2] acompanhamos aqueles que identificam a origem do diaconato com At 6.[3]

     No início da Igreja do Novo Testamento, competia aos apóstolos a responsabilidade de gerenciar os donativos, distribuindo-os conforme a necessidade dos crentes (At 2.45/At 4.37; 5.2). Com o crescimento da Igreja, esta atividade tornou-se por demais pesada para eles. Isso é natural. Conforme o desenvolvimento da Igreja, a situação foi ficando mais complexa, necessitando, portanto, de ajustes dentro dos padrões estabelecidos, para melhor atender aos fiéis no propósito em suas necessidades. Isso serve de alerta: por vezes criamos um sistema sofisticadíssimo com leis e regulamentos, no entanto, não temos pessoas. Ficamos com os regimentos e estrutura para um grupo inexistente. É preciso discernimento e cautela. Aqui, a Igreja crescia e as carências vão se manifestando.

     Abro um parêntese para fazer algumas observações. Mesmo a igreja enfrentando dificuldades dentro de seu próprio seio, como o caso de Ananias e Safira (At 5.1-11) e perseguição (At 5.17-42), ela crescia.

     O princípio da santidade passa a dar o tom da Igreja. A igreja crescia no temor do Senhor.

     Por vezes, as dificuldades e provações se constituem em oportunidades de crescimento em vários sentidos. De modo semelhante, as bênçãos de Deus trazem consigo a oportunidade para amadurecermos com novos desafios.

     A carência costuma nos desafiar à paciência e perseverança. A fartura, prova a nossa generosidade. Sei que as coisas não são tão estanques assim. O que ocorreu entre os crentes da Macedônia, que em meio à ausência de recursos, foram generosos (2Co 8.1-5), apresenta uma linha transversal: tinham pouco materialmente, mas, foram generosos além de qualquer expectativa otimista. No entanto, os desafios assumem configurações diferentes dentro das situações mencionadas a partir de nossa visão dos fatos.

     Atos 6 registra uma dificuldade própria da bênção de Deus: a igreja crescia e, havia generosidade da parte dos crentes para ajudar aos necessitados que, como o próprio Senhor dissera, sempre os teríamos (Mc 14.7; Dt 15.11).

     Nesse contexto é que se insere o diácono. O ofício de diácono teve a sua origem como resultado de uma necessidade: As viúvas dos helenistas (judeus de fala e cultura grega provenientes da Dispersão), estavam sendo habitualmente[4] “esquecidas na distribuição diária” (At 6.1-6).

     Ao contrário do que já foi suposto, o “esquecimento” ou uma provisão menor para as viúvas gregas,[5] não foi deliberado. A questão era mesmo de excesso de trabalho juntando a isso, a possível situação de severa penúria das viúvas.

     Calvino pontua com discernimento:

Se os apóstolos tivesse falado de eleger diáconos antes que a necessidade o demandasse, teriam achado pessoas menos preparadas para o ofício; eles mesmos teriam dado a impressão de evitar um trabalho incômodo; muitos não teriam sido tão generosos em transferir dons a outros homens. Era, pois, necessário que os fiéis se convencessem pela experiência, descobrindo que não poderiam viver sem diáconos, e de fato isto por causa de sua própria falha,  de modo que se alegrariam em escolhê-los.[6]

     Os apóstolos manifestaram grande discernimento. Havia muito que fazer. A Igreja estava fundamentada e perseverava na doutrina dos apóstolos (At 2.42). O crescimento numérico de convertidos era evidente (At 6.1).

Eles precisavam continuar ensinando, alimentando o rebanho. Isto era prioritário na sua vocação apostólica.[7] Não poderiam se desviar de sua tarefa principal, com o risco evidente de falharem em ambas as esferas. Portanto, reconhecendo o problema e ao mesmo tempo não tendo como resolver tudo sozinhos, encaminharam à comunidade, de forma direta, a eleição de “sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregariam deste serviço” (At 6.3). Detectando o problema, agiram de forma humilde, rápida e eficaz.[8] 

     Aqui eles denotam uma sabedoria prática. Todos os diáconos eleitos tinham nomes gregos, o que parece indicar que eram judeus de fala grega. Afinal, não eram as viúvas destes que estavam sendo esquecidas? Portanto, homens que preenchem os critérios especiais para este ofício, sendo de fala grega, seria mais prudente para atender melhor o seu povo e acalmar os ânimos.[9] Os presbíteros nomeiam o que a comunidade elege. (At 6.1-6).

     Eleição feita, os apóstolos, então, se dedicaram mais especificamente a outra espécie de diaconia: “à oração e ao ministério (diakoni/a) da Palavra”(At 6.4), ofício para o qual foram especialmente chamados: Pregar a Palavra de Deus buscando sempre em tudo o discernimento em Deus.[10]

     Eles sabiam o quão necessário é a oração para o desempenho de seu ofício. Havia grandes desafios à frente. Os apóstolos, ainda que não somente, precisavam continuar pregando e orando.[11] Deus haveria de dar-lhes discernimento. Estes homens sabiam de suas limitações; da grandiosidade da mensagem e da condição humana de total ignorância e aversão ao Evangelho, estando todos mortos espiritualmente (Ef 2.1,5).[12] Vemos aqui de passagem, o quão necessário é o tempo gasto com o preparo para o ensino da igreja.

     Também sabemos, que somente Deus poderia capacitá-los a pregar com integridade, autoridade e poder, transformando os corações de seus ouvintes. A questão não era simplesmente de comunicação, antes de poder.

     Anos depois, Paulo relembra aos tessalonicenses como foi o Evangelho por ele pregado: “Porque o nosso evangelho não chegou até vós tão-somente em palavra, mas, sobretudo, em poder, no Espírito Santo e em plena convicção, assim como sabeis ter sido o nosso procedimento entre vós e por amor de vós” (1Ts 1.5/1Co 2.1-5; 4.20).

     E é deste modo, apenas para me valer de uma única ilustração, é que Lídia foi convertida. Paulo que fora pregar em Filipos dirigido pelo Espírito, registra Lucas, “Certa mulher, chamada Lídia, da cidade de Tiatira, vendedora de púrpura, temente a Deus, nos escutava; o Senhor lhe abriu (dianoi/gw) o coração para atender às coisas que Paulo dizia” (At 16.14).

     Sem a operação transformadora de Deus, podemos falar à mente e ao coração, contudo, a transformação integral do homem, a regeneração, é obra de Deus. Precisamos, de fato, pregar e orar.

     Packer sintetiza isso:

A pregação e a oração devem seguir juntas; nossa evangelização não estará de acordo com o conhecimento, nem será abençoada, se não agirmos dessa maneira. Cumpre-nos pregar, porque sem o conhecimento do evangelho nenhum homem pode ser salvo. E cumpre-nos orar, porque somente o soberano Espírito Santo em nós e nos corações dos nossos ouvintes pode tornar eficaz a nossa pregação, visando a salvação dos pecadores; e Deus não envia o Seu Espírito onde não há oração.[13]

     O apostolado envolve essencialmente a tarefa de servir à igreja com especificidade no estudo e ensino da Palavra. Os diáconos, prioritariamente, alimentariam os fiéis com o pão material ‒ cuidariam mais especificamente da administração dos recursos: recebimento, abastecimento, preparação, organização, distribuição ‒[14] tão essencial à sua subsistência. Os apóstolos administrariam de modo mais específico o pão da vida, espiritual, pregando e intercedendo por eles.

     Os diáconos devem ser vistos como braços da misericórdia de Deus em favor do seu povo carente. Eles exercem, em parte, o “socorro” de Deus para com o seu povo (1Co 12.28):[15] “Os diáconos representam a Cristo em seu ofício de misericórdia, e o exercício da misericórdia está vinculado com o consolo dos aflitos”, acentua Kuiper (1886-1966).[16] Eles devem ser os braços solícitos de misericórdia de Deus no serviço aos mais necessitados.[17]

     Historicamente este ofício permaneceu e se expandiu geograficamente, conforme atestam os documentos disponíveis.[18]

     O fato é que a carência no início da igreja institucional, contribuiu de forma abençoadora a surgimento do ofício diaconal e, ao mesmo tempo, os apóstolos (presbíteros), pudessem se dedicar com mais afinco ao “serviço” da Palavra para edificação da Igreja.

Maringá, 29 de abril de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 Integra a Equipe de Pastores da Primeira Igreja Presbiteriana em São Bernardo do Campo, SP.


[1]Kelly, T.C. Smith, Beyer, Bruce, Stam, Legrand, Fee (1Tm 3.8-13), MacArthur, entre outros.

[2]Stagg, Latourette, Stott, Vine.

[3]Irineu, Calvino, R. Gwalther, Bavinck, Vincent, Berkhof, Hendriksen (Fp 1.2), Ladd, R.B. Kuiper, Lloyd-Jones, Kistemaker, Grudem, Chung-Kim, Hains, entre outros.

[4]O verbo paraqewre/w no imperfeito, sugere a ideia de algo frequente e habitual. Este verbo só ocorre aqui (At 6.1) no Novo Testamento.

[5] Calvino aventa sobre essa possibilidade (John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries), 1996 (Reprinted), v. 18/2, (At 6.1), p. 229).

[6]John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries), 1996 (Reprinted), v. 18/2, (At 6.1), p. 231.

[7] “Portanto, quando os apóstolos põem a pregação do evangelho em primeiro plano, disso inferimos que nenhuma obediência é mais agradável a Deus do que esta. Não obstante, ao mesmo tempo realça-se a dificuldade, quando dizem que não estão aptos para exercerem aqueles dois ofícios. Por certo que de modo algum somos superiores a eles” (John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries), 1996 (Reprinted), v. 18/2, (At 6.2), p. 234).

[8] “É uma marca de prudência e piedade preocupar-se em cercear rapidamente o mal no nascedouro, e não protelar a descoberta de um remédio para o mesmo. Pois depois que toda dissensão e rivalidade tiverem recobrado força, se convertem numa ferida que é difícil de se curar”, interpreta Calvino (John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries), 1996 (Reprinted), v. 18/2, (At 6.2), p. 231-232).

[9] “Os sete homens eleitos pela igreja tinham nomes gregos, significando que todos eles eram judeus de fala grega, ou helenistas. A igreja, em uma demonstração de amor e unidade, pode tê-los escolhido para retificar o aparente desequilíbrio que envolvia as viúvas helenistas” (John MacArthur,  Comentário bíblico MacArthur, Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil,  2019, (At 6.5), p. 2743). (Edição do Kindle).

[10]Stott lamentando a falta de seriedade moderna para com a Palavra, diz que se adotássemos esta mesma agenda apostólica, “…. envolveria para a maioria de nós, uma reestruturação radical do nosso programa e do cronograma, inclusive uma delegação considerável de outras responsabilidades aos líderes leigos, mas expressaria uma convicção verdadeiramente neotestamentária a respeito da natureza essencial do pastorado” (John Stott, Eu Creio na Pregação, São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 132).

[11] “Nossa oração a Deus deve ser no sentido de desimpedir nossa vista e nos capacitar para a meditação sobre suas obras” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3. (Sl 92.6), p. 465).

[12]É muita proveitosa a exposição de Lloyd-Jones sobre a necessidade de oração declarada pelos apóstolos. Veja-se: D. M. Lloyd-Jones, Cristianismo Autêntico: Sermões sobre Atos dos Apóstolos, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, v. 3, p. 364-381.

[13]J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 84.

[14] A palavra mesa utilizada em At 6.2 (tra/peza), de onde vem o nosso vocábulo “trapézio”, é empregada no NT para se referir à mesa de alimentos (At 16.34), à mesa de câmbio (Mt 21;12; Jo 2.15) e, simplesmente ao banco onde são feitas transações financeiras (Lc 19.23). Seja o que for, essas atividades estavam dividindo a atenção dos apóstolos. Era preciso mais pessoas para trabalhos mais específicos. Afinal, nada aqui era irrelevante.

[15]A uns estabeleceu Deus na igreja, primeiramente, apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar, mestres; depois, operadores de milagres; depois, dons de curar, socorros, governos, variedades de línguas” (1Co 12.28).

[16]R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo,Grand Rapids, Michigan: SLC., 1985, p. 141.

[17]Veja-se: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 4 (IV.13), p. 83.

[18]Vejam-se: Clemente de Roma, 1Coríntios,42.4; 44.5; 47.6; 54.2; 57.1; Inácio, Cartas: Aos Efésios,2.1; Aos Magnésios,2.1; 3.1; 6.1; 13.1; Aos Tralianos,2.3; 3.1; 7.2; 12.2; Aos Filadélfios,10.2; Aos Esmirnenses,8.1; À Policarpo,6.1; Irineu, Contra as Heresias,V.36.1; Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica,III.39.3-5,7; VI.19.19; 43.2; 43.11; VII.28.1; 30.2.12. Para uma visão histórica das transformações de seu ofício, vejam-se: Hervé Legrand, Diácono: In: Jean-Yves Lacoste, dir., Dicionário Crítico de Teologia, São Paulo: Paulinas; Loyola, 2004, p. 554-555; Hermann W. Beyer, Servir, Serviço: In: G. Kittel, ed. A Igreja do Novo Testamento,São Paulo: ASTE, 1965, p. 288-290.

Share this article
0
Share
Shareable URL
0
Share